Depois destas reflexões gerais sobre o mandamento do amor ao
próximo, é hora de falar das qualidades que devem revestir esse amor. São
fundamentalmente duas: deve ser um amor sincero e um amor de
fato, um amor do coração e das mãos. Desta vez nos ateremos à
primeira qualidade, deixando-nos guiar pelo grande cantor da caridade, que é
Paulo.
A segunda parte da Carta as Romanos é um subseguir-se de
recomendações sobre o amor recíproco na comunidade cristã. “A caridade não seja
fingida[...]; amai-vos uns aos outros com afeto fraterno, esforçai-vos no
recíproco estimar-se…” (Rm 12, 9). “Não devais a ninguém, senão um amor mútuo,
porque quem ama seu semelhante cumpriu a lei” (Rm 13,8).
Para captar a alma unificante destas recomendações, a ideia
de fundo, ou melhor, o “sentimento” que Paulo tem da caridade, temos que partir
da palavra inicial: “A caridade não seja fingida!”.
Esta não é uma das muitas exortações, mas a matriz de que derivam todas as
outras. Contém o segredo da caridade. Procuremos captar, com a ajuda do
Espírito, esse segredo.
O termo original usado por São Paulo, e traduzido como “sem
fingimento”, é an-hypòkritos: “sem hipocrisia”. Este vocábulo é uma espécie de
luz indicadora; é um termo raro, que achamos no Novo Testamento quase
exclusivamente para definir o amor cristão. A expressão “amor sincero”
(an-hypòkritos) volta em 2Cor 6,6 e em 1Pd 1,22. Este último texto permite
notar, com toda a certeza, o significado do termo em questão, porque o explica
com uma perífrase: o amor sincero, diz, consiste no amar-se intensamente com
sincero coração.
São Paulo, então, com aquela simples afirmação, “a caridade
não seja fingida”, leva o tema até a própria raiz da caridade: o coração. O que
se pede do amor é que seja verdadeiro, autêntico, não fictício. Como o vinho,
para ser “sincero”, precisa ser espremido da uva, assim o amor precisa vir do
coração. Também nisso o Apóstolo é o eco fiel do pensamento de Jesus, que
indicou o coração, repetidamente e com força, como o “lugar” em que se
determina o valor do que o homem faz, o que é puro ou impuro, na vida de uma
pessoa (Mt 15,19).
Podemos falar de uma intuição paulina a respeito da
caridade; ela consiste em revelar, por trás do universo visível e exterior da
caridade, feito de obras e palavras, outro universo todo interior, que é, em
comparação com o primeiro, o que a alma é para o corpo. Revemos esta intuição
no outro grande texto sobre a caridade, que é 1Cor 13. São Paulo, se observamos
bem, está falando da caridade interior, das disposições e sentimentos de
caridade: a caridade é paciente, é benigna, não é invejosa, não se irrita, tudo
releva, tudo crê, tudo espera… Nada que se refira, em si e diretamente, ao
fazer o bem, ou às obras de caridade, mas à raiz do querer bem. A benevolência
vem antes da beneficência.
É o Apóstolo mesmo quem explicita a diferença entre as duas
esferas da caridade, dizendo que o maior ato de caridade exterior – o de
repartir com os pobres todos os próprios bens – não serviria de nada sem a
caridade interior (cf. 1Cor 13,3). Seria o oposto da caridade “sincera”. A
caridade hipócrita, de fato, é justo a que faz coisas boas sem querer bem; que
mostra por fora o que não tem correspondência no coração. Neste caso, temos uma
pequenez da caridade, que no fim pode ser disfarce de egoísmo, da busca de si
mesmo, instrumentalização do irmão ou simples remorso de consciência.
Seria um erro fatal contrapor a caridade do coração à dos
fatos, ou refugiar-se na caridade interior para achar nela uma espécie de álibi
da falta de caridade nas obras. No mais, dizer que, sem a caridade, “nada
adianta dar tudo aos pobres” não significa que isto não sirva para ninguém e
seja inútil. Significa, sim, que não serve de nada “para mim”, mas pode ajudar
o pobre que a recebe. Não se trata, portanto, de atenuar a importância das
obras de caridade (veremos isto na próxima vez), mas de garantir que elas
tenham fundamento firme contra o egoísmo e as suas astúcias infinitas. São
Paulo quer que os cristãos sejam “enraizados e fundados na caridade” (Ef 3,17):
que o amor seja a raiz e o fundamento de tudo.
Amar sinceramente quer dizer amar com esta profundidade, num
grau em que você não pode mentir, porque está sozinho diante de si mesmo, do
espelho da sua consciência, sob o olhar de Deus. “Ama o irmão”, escreve
Agostinho, “aquele que, perante Deus, onde só ele vê, confirma o seu coração e
se pergunta no íntimo se em verdade age por amor do irmão; e o olhar que
penetra o coração, onde o homem não consegue enxergar, lhe rende
testemunho”[4]. Era sincero, portanto, o amor de Paulo pelos hebreus se ele
podia dizer:
“Eu digo a verdade em Cristo, não minto; pois a minha
consciência o confirma por meio do Espírito Santo; trago no peito grande
tristeza e sofrimento contínuo; quisera eu mesmo ser anátema, separado de
Cristo, por amor de meus irmãos, meus parentes segundo a carne”
(Rm 9,1-3).
Para ser genuína, a caridade cristã deve partir de dentro,
do coração. E as obras de misericórdia, “das vísceras da misericórdia” (Col
3,12). Devemos, porém, precisar que se trata aqui de algo bem mais radical que
a simples “interiorização”, que um mero acentuar mais a prática interna da
caridade do que a externa. Este é só o primeiro passo. A interiorização se
aproxima da divinização! O cristão, dizia São Pedro, é quem ama “de coração
sincero”. Mas com que coração? Com “o coração novo e o Espírito novo” recebidos
no batismo.
Quando um cristão ama assim, é Deus quem ama através dele;
ele se torna um canal do amor de Deus. Acontece como pela consolação, que não é
mais que uma modalidade do amor: “Deus nos consola em toda nossa tribulação
para podermos nós também consolar os que sofrem todo tipo de aflição com a
mesma consolação com que somos consolados por Deus” (2Cor 1,4). Nós consolamos
com a consolação com que somos consolados por Deus, amamos com o amor com que
somos amados por Deus. Não com outro. Isto explica a ressonância, aparentemente
desproporcionada, de simplíssimos atos de amor, tantas vezes até escondidos, e
toda a esperança e luz que eles criam ao seu redor.
Notas:
[1]. Cf. S. Kierkegaard, Os
atos do amor, versão italiana, Milão, Rusconi, 1983, p. 163.
[2]. Bento XVI, Jesus de
Nazaré, II Parte, Livraria Editora Vaticana, 2011, p. 76.
[3]. S. Catarina de Sena,
Diálogo 64.
[4]. S. Agostinho, Comentário
à Primeira Carta de João, 6,2 (PL 35, 2020).
[5]. Lampe, A Patristic Greek Lexicon, Oxford 1961, p. 8
[6]. S. Inácio de Antioquia,
Carta aos Romanos, saudação.
[7]. Audiência geral de 29 de
novembro de 1972 (Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, X,
pp. 1210).
[8]. J. de La Fontaine,
Fábulas, I, 7
1ª Parte: Amarás o teu próximo como a ti
mesmo
2ª Parte: Amai-vos de coração sincero
3ª Parte: A caridade edifica
Fonte: cantalamessa.org/?p=254&lang=pt
Foto retirada da internet
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