A caridade sem fingimento - Pe Raniero Cantalamessa - 2ª Parte

2ª Parte: Amai-vos de coração sincero

Depois destas reflexões gerais sobre o mandamento do amor ao próximo, é hora de falar das qualidades que devem revestir esse amor. São fundamentalmente duas: deve ser um amor sincero e um amor de fato, um amor do coração e das mãos. Desta vez nos ateremos à primeira qualidade, deixando-nos guiar pelo grande cantor da caridade, que é Paulo.


A segunda parte da Carta as Romanos é um subseguir-se de recomendações sobre o amor recíproco na comunidade cristã. “A caridade não seja fingida[...]; amai-vos uns aos outros com afeto fraterno, esforçai-vos no recíproco estimar-se…” (Rm 12, 9). “Não devais a ninguém, senão um amor mútuo, porque quem ama seu semelhante cumpriu a lei” (Rm 13,8).

Para captar a alma unificante destas recomendações, a ideia de fundo, ou melhor, o “sentimento” que Paulo tem da caridade, temos que partir da palavra inicial: “A caridade não seja fingida!”. Esta não é uma das muitas exortações, mas a matriz de que derivam todas as outras. Contém o segredo da caridade. Procuremos captar, com a ajuda do Espírito, esse segredo.

O termo original usado por São Paulo, e traduzido como “sem fingimento”, é an-hypòkritos: “sem hipocrisia”. Este vocábulo é uma espécie de luz indicadora; é um termo raro, que achamos no Novo Testamento quase exclusivamente para definir o amor cristão. A expressão “amor sincero” (an-hypòkritos) volta em 2Cor 6,6 e em 1Pd 1,22. Este último texto permite notar, com toda a certeza, o significado do termo em questão, porque o explica com uma perífrase: o amor sincero, diz, consiste no amar-se intensamente com sincero coração.

São Paulo, então, com aquela simples afirmação, “a caridade não seja fingida”, leva o tema até a própria raiz da caridade: o coração. O que se pede do amor é que seja verdadeiro, autêntico, não fictício. Como o vinho, para ser “sincero”, precisa ser espremido da uva, assim o amor precisa vir do coração. Também nisso o Apóstolo é o eco fiel do pensamento de Jesus, que indicou o coração, repetidamente e com força, como o “lugar” em que se determina o valor do que o homem faz, o que é puro ou impuro, na vida de uma pessoa (Mt 15,19).

Podemos falar de uma intuição paulina a respeito da caridade; ela consiste em revelar, por trás do universo visível e exterior da caridade, feito de obras e palavras, outro universo todo interior, que é, em comparação com o primeiro, o que a alma é para o corpo. Revemos esta intuição no outro grande texto sobre a caridade, que é 1Cor 13. São Paulo, se observamos bem, está falando da caridade interior, das disposições e sentimentos de caridade: a caridade é paciente, é benigna, não é invejosa, não se irrita, tudo releva, tudo crê, tudo espera… Nada que se refira, em si e diretamente, ao fazer o bem, ou às obras de caridade, mas à raiz do querer bem. A benevolência vem antes da beneficência.

É o Apóstolo mesmo quem explicita a diferença entre as duas esferas da caridade, dizendo que o maior ato de caridade exterior – o de repartir com os pobres todos os próprios bens – não serviria de nada sem a caridade interior (cf. 1Cor 13,3). Seria o oposto da caridade “sincera”. A caridade hipócrita, de fato, é justo a que faz coisas boas sem querer bem; que mostra por fora o que não tem correspondência no coração. Neste caso, temos uma pequenez da caridade, que no fim pode ser disfarce de egoísmo, da busca de si mesmo, instrumentalização do irmão ou simples remorso de consciência.

Seria um erro fatal contrapor a caridade do coração à dos fatos, ou refugiar-se na caridade interior para achar nela uma espécie de álibi da falta de caridade nas obras. No mais, dizer que, sem a caridade, “nada adianta dar tudo aos pobres” não significa que isto não sirva para ninguém e seja inútil. Significa, sim, que não serve de nada “para mim”, mas pode ajudar o pobre que a recebe. Não se trata, portanto, de atenuar a importância das obras de caridade (veremos isto na próxima vez), mas de garantir que elas tenham fundamento firme contra o egoísmo e as suas astúcias infinitas. São Paulo quer que os cristãos sejam “enraizados e fundados na caridade” (Ef 3,17): que o amor seja a raiz e o fundamento de tudo.

Amar sinceramente quer dizer amar com esta profundidade, num grau em que você não pode mentir, porque está sozinho diante de si mesmo, do espelho da sua consciência, sob o olhar de Deus. “Ama o irmão”, escreve Agostinho, “aquele que, perante Deus, onde só ele vê, confirma o seu coração e se pergunta no íntimo se em verdade age por amor do irmão; e o olhar que penetra o coração, onde o homem não consegue enxergar, lhe rende testemunho”[4]. Era sincero, portanto, o amor de Paulo pelos hebreus se ele podia dizer:

Eu digo a verdade em Cristo, não minto; pois a minha consciência o confirma por meio do Espírito Santo; trago no peito grande tristeza e sofrimento contínuo; quisera eu mesmo ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus parentes segundo a carne (Rm 9,1-3).

Para ser genuína, a caridade cristã deve partir de dentro, do coração. E as obras de misericórdia, “das vísceras da misericórdia” (Col 3,12). Devemos, porém, precisar que se trata aqui de algo bem mais radical que a simples “interiorização”, que um mero acentuar mais a prática interna da caridade do que a externa. Este é só o primeiro passo. A interiorização se aproxima da divinização! O cristão, dizia São Pedro, é quem ama “de coração sincero”. Mas com que coração? Com “o coração novo e o Espírito novo” recebidos no batismo.


Quando um cristão ama assim, é Deus quem ama através dele; ele se torna um canal do amor de Deus. Acontece como pela consolação, que não é mais que uma modalidade do amor: “Deus nos consola em toda nossa tribulação para podermos nós também consolar os que sofrem todo tipo de aflição com a mesma consolação com que somos consolados por Deus” (2Cor 1,4). Nós consolamos com a consolação com que somos consolados por Deus, amamos com o amor com que somos amados por Deus. Não com outro. Isto explica a ressonância, aparentemente desproporcionada, de simplíssimos atos de amor, tantas vezes até escondidos, e toda a esperança e luz que eles criam ao seu redor.

Notas:
[1]. Cf. S. Kierkegaard, Os atos do amor, versão italiana, Milão, Rusconi, 1983, p. 163.
[2]. Bento XVI, Jesus de Nazaré, II Parte, Livraria Editora Vaticana, 2011, p. 76.
[3]. S. Catarina de Sena, Diálogo 64.
[4]. S. Agostinho, Comentário à Primeira Carta de João, 6,2 (PL 35, 2020).
[5]. Lampe, A Patristic Greek Lexicon, Oxford 1961, p. 8
[6]. S. Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, saudação.
[7]. Audiência geral de 29 de novembro de 1972 (Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, X, pp. 1210).
[8]. J. de La Fontaine, Fábulas, I, 7

1ª Parte: Amarás o teu próximo como a ti mesmo

2ª Parte: Amai-vos de coração sincero

3ª Parte: A caridade edifica

Fonte: cantalamessa.org/?p=254&lang=pt
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