A caridade sem fingimento - Pe Raniero Cantalamessa - 1ª Parte

1ª Parte: Amarás o teu próximo como a ti mesmo

Um fato notável: o rio Jordão, no seu curso, forma dois mares – o mar da Galileia e o mar Morto. O mar da Galileia é borbulhante de vida, com águas das mais piscosas da terra. O mar Morto é precisamente “morto”: não há rastro de vida nem nele nem ao redor; somente sal. E se trata da mesma água do Jordão! A explicação, pelo menos em parte, é esta: o mar da Galileia recebe as águas do Jordão, mas não as retém para si; deixa fluírem, para irrigarem todo o vale do Jordão. Já o mar Morto recebe as águas e as retém para si, não tem efluentes, dali não sai uma gota. É um símbolo. Para receber o amor de Deus, devemos dá-lo aos irmãos, e, quanto mais damos, mais recebemos. É sobre isto que refletiremos nesta meditação.


Depois de refletir nas duas primeiras meditações sobre o amor de Deus como dom, é hora de meditarmos também sobre o dever de amar; e, em particular, sobre o dever de amar o próximo. O vínculo entre os dois amores é exposto de modo programático na palavra de Deus: “Se Deus nos amou tanto, nós devemos amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,11).

“Amarás o próximo como a ti mesmo” era um mandamento antigo, escrito na lei de Moisés (Lev 19,18) e Jesus mesmo o cita como tal (Lc 10,27). Então como é que Jesus o chama de “seu” mandamento e de mandamento “novo”? A resposta é que mudaram o sujeito, o objeto e o motivo do amor ao próximo.

Mudou antes de tudo o objeto: quem é o próximo que deve ser amado. Não é mais só o compatriota, ou o hóspede que habita em meio a nós, mas todos os homens, inclusive o estrangeiro (o samaritano!), inclusive o inimigo! É verdade que a segunda parte da frase “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo” não se encontra ao pé da letra no Antigo Testamento, mas assume a sua orientação geral, expressa na lei de talião “Olho por olho, dente por dente” (Lev 24,20), ainda mais se confrontada com o que Jesus nos exige:

“Mas eu vos digo: amai os vossos inimigos e rezai por quem vos persegue, para serdes filhos do vosso Pai que está nos céus; pois ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e chover sobre justos e injustos. Se amais os que vos amam, que mérito tendes? Não fazem o mesmo os publicanos? E se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Assim não agem também os pagãos?” (Mt 5, 44-47).

Mudou também o sujeito do amor ao próximo, o significado da palavra próximo. Não é o outro; sou eu. Não é quem está perto, mas quem se aproxima. Com a parábola do bom samaritano, Jesus demonstra que não devemos esperar passivamente que o próximo surja em nosso caminho, dando seta e de sirene ligada. O próximo é você, ou aquele que você pode se tornar. O próximo não existe de cara; só temos um próximo se nos aproximamos de alguém.

E mudou, mais do que tudo, o modelo ou a medida do amor ao próximo. Antes de Jesus, o modelo era o amor a si mesmo: “como a ti mesmo”. Foi dito que Deus não podia amarrar o amor ao próximo numa estaca melhor que esta; não teria atingido o mesmo resultado nem se tivesse dito “Amarás o próximo como ao teu Deus”, porque quanto ao amor de Deus, ou seja, quanto ao que é amar a Deus, o homem ainda pode trapacear, mas quanto ao amor a si mesmo, não. O homem sabe perfeitamente o que significa, em qualquer circunstância, amar a si mesmo; é um espelho que está sempre diante dele[1].

Mas é possível enxergar mal até o amor a si mesmo. Por isso Jesus substitui o modelo e a medida por outro: “Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). O homem pode amar a si mesmo do jeito errado, desejando o mal em vez do bem, o vício e não a virtude. Se um homem desses ama o próximo como a si mesmo e quer para ele o mesmo que quer para si, pobre de quem é amado! Já o amor de Jesus, sabemos aonde nos leva: à verdade, ao bem, ao Pai. Quem o segue “não anda nas trevas”. Ele nos amou dando a vida por nós, quando éramos pecadores, ou seja, inimigos (Rom 5,6).

Entende-se assim o que o evangelista João quer dizer com a afirmação aparentemente contraditória: “Caríssimos, não vos escrevo um mandamento novo, mas um mandamento velho, que tínheis desde o princípio: o mandamento velho é a palavra que ouvistes. E é, no entanto, um mandamento novo o que vos escrevo” (1Jo 2, 7-8). O mandamento do amor ao próximo é antigo na letra, mas novo pela novidade do evangelho. Novo, explica o papa num capítulo de seu mais recente livro sobre Jesus, porque não é mais só “lei”, mas também, e antes, “graça”. Funda-se na comunhão com Cristo, possível pelo dom do Espírito[2].

Com Jesus, passamos da lei do contrapasso, ou entre dois agentes (“O que o outro te faz, fá-lo a ele”) para a lei do trapasso, entre três agentes: “O que Deus te fez, fá-lo ao próximo”, ou, na direção oposta, “O que fizeres com o próximo, Deus fará contigo”. Jesus e os apóstolos repetem este conceito: “Como Deus vos perdoou, perdoai-vos uns aos outros”. “Se não perdoardes de coração aos vossos inimigos, nem vosso pai vos perdoará”. É cortada pela raiz a desculpa do “mas ele não me ama, me ofende”. Isto diz respeito a ele, não a você. A você interessa o que você faz ao outro e como você se comporta diante do que ele faz a você.

Resta a principal pergunta: por que esta singular mudança de rota do amor de Deus ao próximo? Não seria mais lógico “Como eu vos amei, amai a mim” em vez de “Como eu vos amei, amai-vos uns aos outros”? Pois esta é a diferença entre o amor puramente eros e o amor que é eros e ágape juntos. O amor puramente erótico é um circuito fechado: “Ama-me, Alfredo, ama-me como eu te amo”, canta Violeta na Traviata de Verdi: eu te amo, tu me amas. O amor de ágape é um circuito aberto: vem de Deus e volta a ele, mas passando pelo próximo. Jesus inaugurou ele próprio esse novo tipo de amor: “Como o Pai me amou, eu amei a vós” (Jo 15,9).

Santa Catarina de Sena deu sobre o motivo disto a explicação mais simples e convincente. Ela escreve o que considera que Deus quer:

Eu vos peço amar-me com o mesmo amor com que vos amo. Mas não podeis, já que vos amei sem ser amado. Todo o amor que me tendes é de dívida, não de graça, porque devestes amar-me, enquanto eu vos amo com amor de graça, e não de dívida. Não podeis, pois, dar a mim o amor que vos peço. Eis por que vos pus ao lado o vosso próximo: para lhe fazerdes o que a mim não podeis, que é amá-lo sem consideração de mérito nem à espera de utilidade. E considero que fazeis a mim o que fizerdes a ele”[3].

Notas:
[1]. Cf. S. Kierkegaard, Os atos do amor, versão italiana, Milão, Rusconi, 1983, p. 163.
[2]. Bento XVI, Jesus de Nazaré, II Parte, Livraria Editora Vaticana, 2011, p. 76.
[3]. S. Catarina de Sena, Diálogo 64.
[4]. S. Agostinho, Comentário à Primeira Carta de João, 6,2 (PL 35, 2020).
[5]. Lampe, A Patristic Greek Lexicon, Oxford 1961, p. 8
[6]. S. Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, saudação.
[7]. Audiência geral de 29 de novembro de 1972 (Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, X, pp. 1210).
[8]. J. de La Fontaine, Fábulas, I, 7

1ª Parte: Amarás o teu próximo como a ti mesmo

2ª Parte: Amai-vos de coração sincero

3ª Parte: A caridade edifica

Fonte: cantalamessa.org/?p=254&lang=pt
Foto retirada da internet caso seja o autor, por favor, entre em contato para citarmos o credito.

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