O EVANGELHO DA CRIAÇÃO
62.
Por que motivo incluir, neste documento dirigido a todas as pessoas de
boa vontade, um capítulo referido às convicções de fé? Não ignoro que alguns,
no campo da política e do pensamento, rejeitam decididamente a ideia de um
Criador ou consideram-na irrelevante, chegando ao ponto de relegar para o reino
do irracional a riqueza que as religiões possam oferecer para uma ecologia
integral e o pleno desenvolvimento do gênero humano; outras vezes, supõe-se que
elas constituam uma subcultura, que se deve simplesmente tolerar. Todavia a
ciência e a religião, que fornecem diferentes abordagens da realidade, podem
entrar num diálogo intenso e frutuoso para ambas.
1. A luz que a fé oferece
63.
Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e as suas
múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir duma única
maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também
às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e
à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos
permita reparar tudo o que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e
nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria
religiosa com a sua linguagem própria. Além disso, a Igreja Católica está
aberta ao diálogo com o pensamento filosófico, o que lhe permite produzir
várias sínteses entre fé e razão. No que diz respeito às questões sociais,
pode-se constatar isto mesmo no desenvolvimento da doutrina social da Igreja,
chamada a enriquecer-se cada vez mais a partir dos novos desafios.
64.
Por outro lado, embora esta encíclica se abra a um diálogo com todos
para, juntos, buscarmos caminhos de libertação, quero mostrar desde o início
como as convicções da fé oferecem aos cristãos – e, em parte, também a outros
crentes – motivações altas para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais
frágeis. Se pelo simples facto de ser humanas, as pessoas se sentem movidas a
cuidar do ambiente de que fazem parte, «os cristãos, em particular, advertem
que a sua tarefa no seio da criação e os seus deveres em relação à natureza e
ao Criador fazem parte da sua fé».[36] Por isso é bom, para a humanidade e para
o mundo, que nós, crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que
brotam das nossas convicções.
2. A sabedoria das narrações
bíblicas
65.
Sem repropor aqui toda a teologia da Criação, queremos saber o que nos
dizem as grandes narrações bíblicas sobre a relação do ser humano com o mundo.
Na primeira narração da obra criadora, no livro do Gênesis, o plano de Deus
inclui a criação da humanidade. Depois da criação do homem e da mulher, diz-se
que «Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa» (Gn 1,31). A Bíblia ensina
que cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus (cf.
Gn 1,26). Esta afirmação mostra-nos a imensa dignidade de cada pessoa humana,
que «não é somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir
e de livremente se dar e entrar em comunhão com outras pessoas». [37] São João
Paulo II recordou que o amor muito especial que o Criador tem por cada ser
humano «confere-lhe uma dignidade infinita».[38] Todos aqueles que estão
empenhados na defesa da dignidade das pessoas podem encontrar, na fé cristã, as
razões mais profundas para tal compromisso. Como é maravilhosa a certeza de que
a vida de cada pessoa não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo
puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a
cada um de nós: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te
conhecia» (Jr 1,5). Fomos concebidos no coração de Deus e, por isso, «cada um
de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de
nós é amado, cada um é necessário».[39]
66.
As narrações da criação no livro do Gênesis contêm, na sua linguagem
simbólica e narrativa, ensinamentos profundos sobre a existência humana e a sua
realidade histórica. Estas narrações sugerem que a existência humana se baseia
sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com
o próximo e com a terra. Segundo a Bíblia, estas três relações vitais
romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado.
A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por
termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como
criaturas limitadas. Este facto distorceu também a natureza do mandato de
«dominar» a terra (cf. Gn 1,28) e de a «cultivar e guardar» (cf. Gn 2,15). Como
resultado, a relação originariamente harmoniosa entre o ser humano e a natureza
transformou-se num conflito (cf. Gn 3,17-19). Por isso, é significativo que a
harmonia vivida por São Francisco de Assis com todas as criaturas tenha sido
interpretada como uma sanação daquela ruptura. Dizia São Boaventura que,
através da reconciliação universal com todas as criaturas, Francisco voltara de
alguma forma ao estado de inocência original.[40] Longe deste modelo, o pecado
manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias
formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a
natureza.
67.
Não somos Deus. A terra existe antes de nós e foi-nos dada. Isto permite
responder a uma acusação lançada contra o pensamento judaico-cristão: foi dito
que a narração do Gênesis, que convida a «dominar» a terra (cf. Gn 1,28),
favoreceria a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser
humano como dominador e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da
Bíblia, como a entende a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente
rejeitar que, do facto de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar
a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. É importante
ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar
que nos convidam a «cultivar e guardar» o jardim do mundo (cf. Gn 2,15).
Enquanto «cultivar» quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, «guardar»
significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de
reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode
tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas
tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade
para as gerações futuras. Em última análise, «ao Senhor pertence a terra» (Sl
24/23,1), a Ele pertence «a terra e tudo o que nela existe» (Dt 10,14). Por
isso, Deus proíbe-nos toda a pretensão de posse absoluta: «Nenhuma terra será
vendida definitivamente, porque a terra pertence-Me, e vós sois apenas
estrangeiros e meus hóspedes» (Lv 25,23).
68.
Esta responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica que o ser
humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e os delicados
equilíbrios entre os seres deste mundo, porque «Ele deu uma ordem e tudo foi
criado; Ele fixou tudo pelos séculos sem fim e estabeleceu leis a que não se
pode fugir!» (Sl 148,5b-6). Consequentemente, a legislação bíblica detém-se a
propor ao ser humano várias normas relativas não só às outras pessoas, mas
também aos restantes seres vivos: «Se vires o jumento do teu irmão ou o seu boi
caídos no caminho, não te desvies deles, mas ajuda-os a levantarem-se. (...) Se
encontrares no caminho, em cima de uma árvore ou no chão, um ninho de pássaros
com filhotes, ou ovos cobertos pela mãe, não apanharás a mãe com a ninhada» (Dt
22,4.6). Nesta linha, o descanso do sétimo dia não é proposto só para o ser
humano, mas «para que descansem o teu boi e o teu jumento» (Ex 23,12). Assim
nos damos conta de que a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico,
que se desinteressa das outras criaturas.
69.
Ao mesmo tempo que podemos fazer um uso responsável das coisas, somos
chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de
Deus e, «pelo simples facto de existirem, eles O bendizem e Lhe dão
glória»[41], porque «o Senhor Se alegra em suas obras» (Sl 104/103,31).
Precisamente pela sua dignidade única e por ser dotado de inteligência, o ser
humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis internas, já que «o
Senhor fundou a terra com sabedoria» (Pr 3,19). Hoje, a Igreja não diz, de
forma simplicista, que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem
do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível
dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como fizeram os bispos da Alemanha –
que, nas outras criaturas, «se poderia falar da prioridade do ser sobre o ser
úteis».[42] O Catecismo põe em questão, de forma muito direta e insistente, um
antropocentrismo desordenado: «Cada criatura possui a sua bondade e perfeição
próprias. (...) As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem,
cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus.
É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para
evitar o uso desordenado das coisas».[43]
70.
Na narração de Caim e Abel, vemos que a inveja levou Caim a cometer a
injustiça extrema contra o seu irmão. Isto, por sua vez, provocou uma ruptura
da relação entre Caim e Deus e entre Caim e a terra, da qual foi exilado. Esta
passagem aparece sintetizada no dramático colóquio de Deus com Caim. Deus
pergunta: «Onde está o teu irmão Abel?» Caim responde que não sabe, e Deus
insiste com ele: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até
Mim. De futuro, serás amaldiçoado pela terra (…). Serás vagabundo e fugitivo
sobre a terra» (Gn 4,9-12). O descuido no compromisso de cultivar e manter um correto
relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou devedor da minha
solicitude e custódia, destrói o relacionamento interior comigo mesmo, com os
outros, com Deus e com a terra. Quando todas estas relações são negligenciadas,
quando a justiça deixa de habitar na terra, a Bíblia diz-nos que toda a vida
está em perigo. Assim no-lo ensina a narração de Noé, quando Deus ameaça acabar
com a humanidade pela sua persistente incapacidade de viver à altura das
exigências da justiça e da paz: «O fim de toda a humanidade chegou diante de
Mim, pois ela encheu a terra de violência» (Gn 6,13). Nestas narrações tão
antigas, ricas de profundo simbolismo, já estava contida a convicção atual de
que tudo está inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria vida e
das nossas relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e
da fidelidade aos outros.
71.
Embora Deus reconhecesse que «a maldade dos homens era grande na terra»
(Gn 6,5), «arrependendo-Se de ter criado o homem sobre a terra» (Gn 6,6), Ele
decidiu abrir um caminho de salvação através de Noé, que ainda se mantinha
íntegro e justo. Assim deu à humanidade a possibilidade de um novo início.
Basta um homem bom para haver esperança! A tradição bíblica estabelece
claramente que esta reabilitação implica a redescoberta e o respeito dos ritmos
inscritos na natureza pela mão do Criador. Isto está patente, por exemplo, na
lei do Shabbath. No sétimo dia, Deus descansou de todas as suas obras. Deus
ordenou a Israel que cada sétimo dia devia ser celebrado como um dia de descanso,
um Shabbath (cf. Gn 2,2-3; Ex 16,23; 20, 10). Além disso, de sete em sete anos,
instaurou-se também um ano sabático para Israel e a sua terra (cf. Lv 25,1-4),
durante o qual se dava descanso completo à terra, não se semeava e só se colhia
o indispensável para sobreviver e oferecer hospitalidade (cf. Lv 25,4-6). Por
fim, passadas sete semanas de anos, ou seja quarenta e nove anos, celebrava-se
o jubileu, um ano de perdão universal, «proclamando na vossa terra a liberdade
de todos os que a habitam» (Lv 25,10). O desenvolvimento desta legislação
procurou assegurar o equilíbrio e a equidade nas relações do ser humano com os
outros e com a terra onde vivia e trabalhava. Mas, ao mesmo tempo, era um
reconhecimento de que a dádiva da terra com os seus frutos pertence a todo o
povo. Aqueles que cultivavam e guardavam o território deviam partilhar os seus
frutos, especialmente com os pobres, as viúvas, os órfãos e os estrangeiros:
«Quando procederes à ceifa das vossas terras, não ceifarás as espigas até à
extremidade do campo, e não apanharás as espigas caídas. Não rebuscarás também
a tua vinha, e não apanharás os bagos caídos. Deixá-los-ás para o pobre e para
o estrangeiro» (Lv 19,9-10).
72.
Os Salmos convidam, frequentemente, o ser humano a louvar a Deus
criador: «Estendeu a terra sobre as águas, porque o seu amor é eterno» (Sl 136/135,6).
E convidam também as outras criaturas a louvá-Lo: «Louvai-O, sol e lua;
louvai-O, estrelas luminosas! Louvai-O, alturas dos céus e águas que estais
acima dos céus! Louvem todos o nome do Senhor, porque Ele deu uma ordem e tudo
foi criado» (Sl 148,3-5). Existimos não só pelo poder de Deus, mas também na sua
presença e companhia. Por isso O adoramos.
73.
Os escritos dos profetas convidam a recuperar forças, nos momentos
difíceis, contemplando a Deus poderoso que criou o universo. O poder infinito
de Deus não nos leva a escapar da sua ternura paterna, porque n’Ele se conjugam
o carinho e a força. Na verdade, toda a sã espiritualidade implica
simultaneamente acolher o amor divino e adorar, com confiança, o Senhor pelo
seu poder infinito. Na Bíblia, o Deus que liberta e salva é o mesmo que criou o
universo, e estes dois modos de agir divino estão íntima e inseparavelmente
ligados: «Ah! Senhor Deus, foste Tu que fizeste o céu e a terra com o teu
grande poder e o teu braço estendido! Para Ti, nada é impossível! (...) Tu
fizeste sair do Egito o teu povo, Israel, com prodígios e milagres» (Jr 32,17.21).
«O Senhor é um Deus eterno, que criou os confins da terra. Não se cansa nem
perde as forças. É insondável a sua sabedoria. Ele dá forças ao cansado e enche
de vigor o fraco» (Is 40,28b-29).
74.
A experiência do cativeiro em Babilônia gerou uma crise espiritual que
levou a um aprofundamento da fé em Deus, explicitando a sua omnipotência
criadora, para animar o povo a recuperar a esperança no meio da sua situação
infeliz. Séculos mais tarde, noutro momento de prova e perseguição, quando o
Império Romano procurou impor um domínio absoluto, os fiéis voltaram a
encontrar consolação e esperança aumentando a sua confiança em Deus
omnipotente, e cantavam: «Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus
todo-poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos!» (Ap 15,3). Se Deus
pôde criar o universo a partir do nada, também pode intervir neste mundo e
vencer qualquer forma de mal. Por isso, a injustiça não é invencível.
75.
Não podemos defender uma espiritualidade que esqueça Deus todo-poderoso
e criador. Neste caso, acabaríamos por adorar outros poderes do mundo, ou
colocar-nos-íamos no lugar do Senhor chegando à pretensão de espezinhar sem
limites a realidade criada por Ele. A melhor maneira de colocar o ser humano no
seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é
voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo; caso
contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas
próprias leis e interesses.
3. O mistério do universo
76.
Na tradição judaico-cristã, dizer «criação» é mais do que dizer
natureza, porque tem a ver com um projeto do amor de Deus, onde cada criatura
tem um valor e um significado. A natureza entende-se habitualmente como um
sistema que se analisa, compreende e gere, mas a criação só se pode conceber
como um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade
iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal.
77.
«A palavra do Senhor criou os céus» (Sl 33/32, 6). Deste modo indica-se
que o mundo procede, não do caos nem do acaso, mas duma decisão, o que o exalta
ainda mais. Há uma opção livre, expressa na palavra criadora. O universo não
apareceu como resultado duma omnipotência arbitrária, duma demonstração de força
ou dum desejo de autoafirmação. A criação pertence à ordem do amor. O amor de
Deus é a razão fundamental de toda a criação: «Tu amas tudo quanto existe e não
detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias
criado» (Sab 11,24). Então cada criatura é objeto da ternura do Pai que lhe
atribui um lugar no mundo. Até a vida efémera do ser mais insignificante é objeto
do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu
carinho. Dizia São Basílio Magno que o Criador é também «a bondade sem
cálculos»,[44] e Dante Alighieri falava do «amor que move o sol e as outras
estrelas».[45] Por isso, das obras criadas pode-se subir «à sua amorosa
misericórdia».[46]
78.
Ao mesmo tempo, o pensamento judaico-cristão desmitificou a natureza.
Sem deixar de a admirar pelo seu esplendor e imensidão, já não lhe atribui um
carácter divino. Deste modo, ressalta ainda mais o nosso compromisso para com
ela. Um regresso à natureza não pode ser feito à custa da liberdade e da
responsabilidade do ser humano, que é parte do mundo com o dever de cultivar as
próprias capacidades para o proteger e desenvolver as suas potencialidades. Se
reconhecermos o valor e a fragilidade da natureza e, ao mesmo tempo, as
capacidades que o Criador nos deu, isto permite-nos acabar hoje com o mito
moderno do progresso material ilimitado. Um mundo frágil, com um ser humano a
quem Deus confia o cuidado do mesmo, interpela a nossa inteligência para
reconhecer como deveremos orientar, cultivar e limitar o nosso poder.
79.
Neste universo, composto por sistemas abertos que entram em comunicação
uns com os outros, podemos descobrir inumeráveis formas de relação e
participação. Isto leva-nos também a pensar o todo como aberto à transcendência
de Deus, dentro da qual se desenvolve. A fé permite-nos interpretar o
significado e a beleza misteriosa do que acontece. A liberdade humana pode
prestar a sua contribuição inteligente para uma evolução positiva, como pode
também acrescentar novos males, novas causas de sofrimento e verdadeiros
atrasos. Isto dá lugar à apaixonante e dramática história humana, capaz de
transformar-se num desabrochamento de libertação, engrandecimento, salvação e
amor, ou, pelo contrário, num percurso de declínio e mútua destruição. Por isso
a Igreja, com a sua ação, procura não só lembrar o dever de cuidar da natureza,
mas também e «sobretudo proteger o homem da destruição de si mesmo».[47]
80.
Apesar disso, Deus, que deseja atuar conosco e contar com a nossa
cooperação, é capaz também de tirar algo de bom dos males que praticamos,
porque «o Espírito Santo possui uma inventiva infinita, própria da mente
divina, que sabe prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas mais
complexas e impenetráveis».[48] De certa maneira, quis limitar-Se a Si mesmo, criando
um mundo necessitado de desenvolvimento, onde muitas coisas que consideramos
males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem parte das dores de
parto que nos estimulam a colaborar com o Criador.[49] Ele está presente no
mais íntimo de cada coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura, e isto
dá lugar também à legítima autonomia das realidades terrenas.[50] Esta presença
divina, que garante a permanência e o desenvolvimento de cada ser, «é a
continuação da ação criadora».[51] O Espírito de Deus encheu o universo de
potencialidades que permitem que, do próprio seio das coisas, possa brotar
sempre algo de novo: «A natureza nada mais é do que a razão de certa arte –
concretamente a arte divina – inscrita nas coisas, pela qual as próprias coisas
se movem para um fim determinado. Como se o mestre construtor de navios pudesse
conceder à madeira a possibilidade de se mover a si mesma para tomar a forma da
nave».[52]
81.
Embora suponha também processos evolutivos, o ser humano implica uma
novidade que não se explica cabalmente pela evolução doutros sistemas abertos.
Cada um de nós tem em si uma identidade pessoal, capaz de entrar em diálogo com
os outros e com o próprio Deus. A capacidade de reflexão, o raciocínio, a
criatividade, a interpretação, a elaboração artística e outras capacidades
originais manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e
biológico. A novidade qualitativa, implicada no aparecimento dum ser pessoal
dentro do universo material, pressupõe uma ação direta de Deus, uma chamada
peculiar à vida e à relação de um Tu com outro tu. A partir dos textos
bíblicos, consideramos o ser humano como sujeito, que nunca pode ser reduzido à
categoria de objeto.
82.
Mas seria errado também pensar que os outros seres vivos devam ser
considerados como meros objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano.
Quando se propõe uma visão da natureza unicamente como objeto de lucro e
interesse, isso comporta graves consequências também para a sociedade. A visão
que consolida o arbítrio do mais forte favoreceu imensas desigualdades,
injustiças e violências para a maior parte da humanidade, porque os recursos
tornam-se propriedade do primeiro que chega ou de quem tem mais poder: o
vencedor leva tudo. O ideal de harmonia, justiça, fraternidade e paz que Jesus
propõe situa-se nos antípodas de tal modelo, como Ele mesmo Se expressou ao
compará-lo com os poderes do seu tempo: «Sabeis que os chefes das nações as
governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não
seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande,
seja o vosso servo» (Mt 20,25-26).
83.
A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi
alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação universal.[53] E assim
juntamos mais um argumento para rejeitar todo e qualquer domínio despótico e
irresponsável do ser humano sobre as outras criaturas. O fim último das
restantes criaturas não somos nós. Mas todas avançam, juntamente conosco e
através de nós, para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente
onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina. Com efeito, o ser humano,
dotado de inteligência e amor e atraído pela plenitude de Cristo, é chamado a
reconduzir todas as criaturas ao seu Criador.
4. A mensagem de cada criatura
na harmonia de toda a criação
84.
O facto de insistir na afirmação de que o ser humano é imagem de Deus
não deveria fazer-nos esquecer que cada criatura tem uma função e nenhuma é
supérflua. Todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu
carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas: tudo é carícia de
Deus. A história da própria amizade com Deus desenrola-se sempre num espaço
geográfico que se torna um sinal muito pessoal, e cada um de nós guarda na
memória lugares cuja lembrança nos faz muito bem. Quem cresceu no meio de
montes, quem na infância se sentava junto do riacho a beber, ou quem jogava
numa praça do seu bairro, quando volta a esses lugares sente-se chamado a
recuperar a sua própria identidade.
85.
Deus escreveu um livro estupendo, «cujas letras são representadas pela
multidão de criaturas presentes no universo».[54] E justamente afirmaram os
bispos do Canadá que nenhuma criatura fica fora desta manifestação de Deus:
«Desde os panoramas mais amplos às formas de vida mais frágeis, a natureza é um
manancial incessante de encanto e reverência. Trata-se duma contínua revelação
do divino».[55] Os bispos do Japão, por sua vez, disseram algo muito sugestivo:
«Sentir cada criatura que canta o hino da sua existência é viver jubilosamente
no amor de Deus e na esperança».[56] Esta contemplação da criação permite-nos
descobrir qualquer ensinamento que Deus nos quer transmitir através de cada
coisa, porque, «para o crente, contemplar a criação significa também escutar
uma mensagem, ouvir uma voz paradoxal e silenciosa».[57] Podemos afirmar que,
«ao lado da revelação propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há
uma manifestação divina no despontar do sol e no cair da noite».[58] Prestando
atenção a esta manifestação, o ser humano aprende a reconhecer-se a si mesmo na
relação com as outras criaturas: «Eu expresso-me exprimindo o mundo; exploro a
minha sacralidade decifrando a do mundo».[59]
86.
O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a
riqueza inesgotável de Deus. São Tomás de Aquino sublinhava, sabiamente, que a
multiplicidade e a variedade «provêm da intenção do primeiro agente», o Qual
quis que «o que falta a cada coisa, para representar a bondade divina, seja suprido
pelas outras»,[60] pois a sua bondade «não pode ser convenientemente
representada por uma só criatura».[61] Por isso, precisamos de individuar a
variedade das coisas nas suas múltiplas relações.[62] Assim, compreende-se
melhor a importância e o significado de qualquer criatura, se a contemplarmos
no conjunto do plano de Deus. Tal é o ensinamento do Catecismo: «A
interdependência das criaturas é querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a
florzinha, a águia e o pardal: o espetáculo das suas incontáveis diversidades e
desigualdades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só
existem na dependência umas das outras, para se completarem mutuamente no
serviço umas das outras».[63]
87.
Quando nos damos conta do reflexo de Deus em tudo o que existe, o
coração experimenta o desejo de adorar o Senhor por todas as suas criaturas e
juntamente com elas, como se vê neste gracioso cântico de São Francisco de
Assis:
«Louvado sejas, meu
Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o meu senhor irmão sol, o
qual faz o dia e por ele nos alumia. E ele é belo e radiante com grande
esplendor: de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã lua e pelas estrelas, que no céu formaste claras, preciosas e belas. Louvado
sejas, meu Senhor, pelo irmão vento pelo ar, pela nuvem, pelo sereno, e todo o
tempo, com o qual, às tuas criaturas, dás o sustento.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã água, que é tão útil e humilde, e preciosa e casta. Louvado sejas,
meu Senhor, pelo irmão fogo, pelo qual iluminas a noite: ele é belo e alegre,
vigoroso e forte».[64]
88.
Os bispos do Brasil sublinharam que toda a natureza, além de manifestar
Deus, é lugar da sua presença. Em cada criatura, habita o seu Espírito
vivificante, que nos chama a um relacionamento com Ele.[65] A descoberta desta
presença estimula em nós o desenvolvimento das «virtudes ecológicas».[66] Mas,
quando dizemos isto, não esqueçamos que há também uma distância infinita, pois
as coisas deste mundo não possuem a plenitude de Deus. Esquecê-lo, aliás,
também não faria bem às criaturas, porque não reconheceríamos o seu lugar
verdadeiro e próprio, acabando por lhes exigir indevidamente aquilo que, na sua
pequenez, não nos podem dar.
5. Uma comunhão universal
89.
As criaturas deste mundo não podem ser consideradas um bem sem dono:
«Todas são tuas, ó Senhor, que amas a vida» (Sab 11,26). Isto gera a convicção
de que nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos
unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma
comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde. Quero
lembrar que «Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a
desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a
extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação».[67]
90.
Isto não significa igualar todos os seres vivos e tirar ao ser humano
aquele seu valor peculiar que, simultaneamente, implica uma tremenda
responsabilidade. Também não requer uma divinização da terra, que nos privaria
da nossa vocação de colaborar com ela e proteger a sua fragilidade. Estas
concepções acabariam por criar novos desequilíbrios, na tentativa de fugir da
realidade que nos interpela.[68] Às vezes nota-se a obsessão de negar qualquer
preeminência à pessoa humana, conduzindo-se uma luta em prol das outras
espécies que não se vê na hora de defender igual dignidade entre os seres
humanos. Devemos, certamente, ter a preocupação de que os outros seres vivos
não sejam tratados de forma irresponsável, mas deveriam indignar-nos sobretudo
as enormes desigualdades que existem entre nós, porque continuamos a tolerar
que alguns se considerem mais dignos do que outros. Deixamos de notar que
alguns se arrastam numa miséria degradante, sem possibilidades reais de
melhoria, enquanto outros não sabem sequer que fazer ao que têm, ostentam
vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível de
desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. Na
prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que outros,
como se tivessem nascido com maiores direitos.
91.
Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres
da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e
preocupação pelos seres humanos. É evidente a incoerência de quem luta contra o
tráfico de animais em risco de extinção, mas fica completamente indiferente
perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se dos pobres ou procura destruir
outro ser humano de que não gosta. Isto compromete o sentido da luta pelo meio
ambiente. Não é por acaso que São Francisco, no cântico onde louva a Deus pelas
criaturas, acrescenta o seguinte: «Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que
perdoam por teu amor». Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma
preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a
um compromisso constante com os problemas da sociedade.
92.
Além disso, quando o coração está verdadeiramente aberto a uma comunhão
universal, nada e ninguém fica excluído desta fraternidade. Portanto, é verdade
também que a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo
sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos
aos outros seres humanos. O coração é um só, e a própria miséria que leva a
maltratar um animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas.
Todo o encarniçamento contra qualquer criatura «é contrário à dignidade
humana».[69] Não podemos considerar-nos grandes amantes da realidade, se
excluímos dos nossos interesses alguma parte dela: «Paz, justiça e conservação
da criação são três questões absolutamente ligadas, que não se poderão separar,
tratando-as individualmente sob pena de cair novamente no reducionismo».[70]
Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como
irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus
tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao
irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra.
6. O destino comum dos bens
93.
Hoje, crentes e não-crentes estão de acordo que a terra é,
essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos. Para
os crentes, isto torna-se uma questão de fidelidade ao Criador, porque Deus
criou o mundo para todos. Por conseguinte, toda a abordagem ecológica deve
integrar uma perspectiva social que tenha em conta os direitos fundamentais dos
mais desfavorecidos. O princípio da subordinação da propriedade privada ao
destino universal dos bens e, consequentemente, o direito universal ao seu uso
é uma «regra de ouro» do comportamento social e o «primeiro princípio de toda a
ordem ético-social».[71] A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou
intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de
qualquer forma de propriedade privada. São João Paulo II lembrou esta doutrina,
com grande ênfase, dizendo que «Deus deu a terra a todo o gênero humano, para
que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar
ninguém».[72] São palavras densas e fortes. Insistiu que «não seria
verdadeiramente digno do homem, um tipo de desenvolvimento que não respeitasse
e promovesse os direitos humanos, pessoais e sociais, econômicos e políticos,
incluindo os direitos das nações e dos povos».[73]Com grande clareza, explicou
que «a Igreja defende, sim, o legítimo direito à propriedade privada, mas
ensina, com não menor clareza, que sobre toda a propriedade particular pesa
sempre uma hipoteca social, para que os bens sirvam ao destino geral que Deus
lhes deu».[74] Por isso, afirma que «não é segundo o desígnio de Deus gerir
este dom de modo tal que os seus benefícios aproveitem só a alguns poucos».[75]
Isto põe seriamente em discussão os hábitos injustos duma parte da
humanidade.[76]
94.
O rico e o pobre têm igual dignidade, porque «quem os fez a ambos foi o
Senhor» (Pr 22,2); «Ele criou o pequeno e o grande» (Sab 6,7) e «faz com que o
sol se levante sobre os bons e os maus» (Mt 5,45). Isto tem consequências
práticas, como explicitaram os bispos do Paraguai: «Cada camponês tem direito
natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar,
trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de segurança existencial.
Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja
ilusório mas real. Isto significa que, além do título de propriedade, o
camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e
acesso ao mercado».[77]
95.
O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e
responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para a administrar em
benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de
negar a existência aos outros. Por isso, os bispos da Nova Zelândia
perguntavam-se que significado possa ter o mandamento «não matarás», quando
«uns vinte por cento da população mundial consomem recursos numa medida tal que
roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de que necessitam para
sobreviver».[78]
7. O olhar de Jesus
96.
Jesus retoma a fé bíblica no Deus criador e destaca um dado fundamental:
Deus é Pai (cf. Mt 11,25). Em colóquio com os seus discípulos, Jesus
convidava-os a reconhecer a relação paterna que Deus tem com todas as criaturas
e recordava-lhes, com comovente ternura, como cada uma delas era importante aos
olhos d’Ele: «Não se vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo,
nenhum deles passa despercebido diante de Deus» (Lc 12,6). «Olhai as aves do
céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste
alimenta-as» (Mt 6,26).
97.
O Senhor podia convidar os outros a estar atentos à beleza que existe no
mundo, porque Ele próprio vivia em contato permanente com a natureza e
prestava-lhe uma atenção cheia de carinho e admiração. Quando percorria os
quatro cantos da sua terra, detinha-Se a contemplar a beleza semeada por seu
Pai e convidava os discípulos a individuarem, nas coisas, uma mensagem divina:
«Levantai os olhos e vede os campos que estão doirados para a ceifa» (Jo 4,35).
«O Reino dos Céus é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e
semeou no seu campo. É a menor de todas as sementes; mas, depois de crescer,
torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore» (Mt 13,31-32).
98.
Jesus vivia em plena harmonia com a criação, com grande maravilha dos
outros: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?» (Mt 8,27). Não Se
apresentava como um asceta separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis
da vida. Falando de Si mesmo, declarou: «Veio o Filho do Homem que come e bebe,
e dizem: “Aí está um glutão e bebedor de vinho”» (Mt 11,19). Encontrava-Se
longe das filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste
mundo. Todavia, ao longo da história, estes dualismos combalidos tiveram
notável influência nalguns pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho.
Jesus trabalhava com suas mãos, entrando diariamente em contato com matéria
criada por Deus para a moldar com a sua capacidade de artesão. É digno de nota
que a maior parte da sua existência terrena tenha sido consagrada a esta
tarefa, levando uma vida simples que não despertava maravilha alguma: «Não é
Ele o carpinteiro, o filho de Maria?» (Mc 6, 3). Assim santificou o trabalho,
atribuindo-lhe um valor peculiar para o nosso amadurecimento. São João Paulo II
ensinava que, «suportando o que há de penoso no trabalho em união com Cristo
crucificado por nós, o homem colabora, de alguma forma, com o Filho de Deus na
redenção da humanidade».[79]
99.
Segundo a compreensão cristã da realidade, o destino da criação inteira
passa pelo mistério de Cristo, que nela está presente desde a origem: «Todas as
coisas foram criadas por Ele e para Ele» (Cl 1, 16).[80] O prólogo do Evangelho
de João (1,1-18) mostra a atividade criadora de Cristo como Palavra divina
(Logos). Mas o mesmo prólogo surpreende ao afirmar que esta Palavra «Se fez
carne» (Jo 1,14). Uma Pessoa da Santíssima Trindade inseriu-Se no universo criado,
partilhando a própria sorte com ele até à cruz. Desde o início do mundo, mas de
modo peculiar a partir da encarnação, o mistério de Cristo opera veladamente no
conjunto da realidade natural, sem com isso afetar a sua autonomia.
100.
O Novo Testamento não nos fala só de Jesus terreno e da sua relação tão
concreta e amorosa com o mundo; mostra-no-Lo também como ressuscitado e
glorioso, presente em toda a criação com o seu domínio universal. «Foi n’Ele
que aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude e, por Ele e para Ele,
reconciliar todas as coisas (…), tanto as que estão na terra como as que estão
no céu» (Cl 1,19-20). Isto lança-nos para o fim dos tempos, quando o Filho
entregar ao Pai todas as coisas «a fim de que Deus seja tudo em todos» (1Cor
15,28). Assim, as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade
meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para
um destino de plenitude. As próprias flores do campo e as aves que Ele,
admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua
presença luminosa.
[36] João Paulo II, Mensagem
para o Dia Mundial da Paz de 1990, 15: AAS 82 (1990), 156.
[37] Catecismo da Igreja
Católica, 357.
[38] Angelus com os inválidos,
Osnabrük / Alemanha (16 de Novembro de 1980): Insegnamenti 3/2 (1980), 1232;
L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 23/XI/1980), 20.
[39] Bento XVI, Homilia no
início solene do Ministério Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 711;
L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/IV/2015), 5.
[40] Cf. Legenda Maior, VIII,
1: Fonti Francescane, 1134.
[41] Catecismo da Igreja
Católica, 2416.
[42] Conferência Episcopal
Alemã, Zukunft der Schöpfung – Zukunft der Menschheit. Erklärung der Deutschen
Bischofskonferenz zu Fragen der Umwelt und der Energieversorgung (1980), II, 2.
[43] Catecismo da Igreja
Católica, 339.
[44] Hom. in Hexaemeron, 1, 2,
10: PG 29, 9.
[45] Divina Commedia.
Paradiso, Canto XXXIII, 145.
[46] Bento XVI, Catequese (9
de Novembro de 2005), 3: Insegnamenti1 (2005), 768; L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 12/XI/2005), 24.
[47] Idem, Carta enc. Caritas
in veritate (29 de Junho de 2009), 51:AAS101 (2009), 687.
[48] João Paulo II, Catequese
(24 de Abril de 1991), 6: Insegnamenti14/1 (1991), 856; L’Osservatore Romano
(ed. portuguesa de 28/IV/1991), 12.
[49] O Catecismo ensina que
Deus quis criar um mundo em caminho para a perfeição última, o que implica a
presença da imperfeição e do mal físico: ver Catecismo da Igreja Católica,310.
[50] Cf. Conc. Ecum. Vat. II,
Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 36.
[51] Tomás de Aquino, Summa
theologiaeI, q. 104, art. 1, ad 4.
[52] Idem, In octo libros
Physicorum Aristotelis expositio, lib. II, lectio 14.
[53] Coloca-se, nesta perspectiva,
a contribuição do P. Teilhard de Chardin; veja-se Paulo VI, Discurso numa
fábrica químico-farmacêutico (24 de Fevereiro de 1966): Insegnamenti 4 (1966),
992-993; João Paulo II, Carta ao reverendo P. George V. Coyne (1 de Junho de
1988): Insegnamenti 11/2 (1988), 1715; Bento XVI, Homilia na Celebração das Vésperas, em Aosta
(24 de Julho de 2009): Insegnamenti 5/2 (2009), 60.
[54] João Paulo II, Catequese
(30 de Janeiro de 2002), 6: Insegnamenti 25/1 (2002), 140; L´Osservatore Romano
(ed. portuguesa de 2/II/2002), 12.
[55] Conferência Episcopal do
Canadá - Comissão para a Pastoral Social, You love all that exists… All things are
yours, God, Lover of Life (4 de Outubro de 2003), 1.
[56] Conferência dos Bispos
Católicos do Japão, Reverence for Life. A Message for the Twenty-First
Century (1 de Janeiro de 2001), 89.
[57] João Paulo II, Catequese
(26 de Janeiro de 2000), 5: Insegnamenti23/1 (2000), 123;L´Osservatore Romano
(ed. portuguesa de 29/I/2000), 8.
[58] Idem, Catequese (2 de
Agosto de 2000), 3: Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 5/VIII/2000), 8.
[59] Paul Ricoeur, Philosophie
de la volonté. 2ª parte:Finitude et culpabilité (Paris 2009), 216.
[60] Summa theologiae I, q. 47, art. 1.
[61] Ibidem.
[62] Cf.ibid., art. 2, ad. 1; art. 3.
[63] Catecismo da Igreja
Católica, 340.
[64] Cantico delle creature:
Fonti Francescane, 263.
[65] Cf. Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil, A Igreja e a questão ecológica (1992), 53-54.
[66] Ibid., 61.
[67] Francisco, Exort.
ap.Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 215: AAS105 (2013), 1109.
[68] Cf. Bento XVI, Carta enc.
Caritas in veritate(29 de Junho de 2009), 14:AAS101 (2009), 650.
[69] Catecismo da Igreja
Católica, 2418.
[70] Conferência do Episcopado
Dominicano, Carta pastoral Sobre la relación del hombre con la naturaleza (21
de Janeiro de 1987).
[71] João Paulo II, Carta enc.
Laborem exercens (14 de Setembro de 1981),19: AAS 73 (1981), 626.
[72] Carta enc. Centesimus annus
(1 de Maio de 1991), 31: AAS 83 (1991), 831.
[73] Carta enc. Sollicitudo
rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 33:AAS 80 (1988), 557.
[74] Discurso aos indígenas e
agricultores do México, em Cuilapán (29 de Janeiro de 1979), 6: AAS 71 (1979),
209; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 11/II/1979), 4.
[75] Homilia na Missa
celebrada para os agricultores, em Recife/Brasil (7 de Julho de 1980), 4: AAS
72 (1980), 926;L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 20/VII/1980), 13.
[76] Cf. Mensagem para o Dia Mundial
da Paz de 1990, 8: AAS 82 (1990), 152.
[77] Conferência Episcopal do
Paraguai, Carta pastoral El campesino paraguayo y la tierra (12 de Junho de
1983), 2, 4, d.
[78] Conferência Episcopal da
Nova Zelândia, Statement on Environmental Issues (1 de Setembro de 2006).
[79]Carta enc. Laborem
exercens (14 de Setembro de 1981), 27: AAS 73 (1981), 645.
[80] Por isso, São Justino
podia falar de «sementes do Verbo» no mundo. Cf. II Apologia 8, 1-2; 13, 3-6:
PG 6, 457-458; 467.
Fonte: Libreria Editrice
Vaticana
w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html
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