É suficiente manter a porta do coração entreaberta que «Deus
arranja a maneira de entrar», salvando-nos de acabar no exército dos
«in-misericordi»: neologismo para definir aqueles que, sem misericórdia, põem
em prática as bem-aventuranças ao contrário. Foi precisamente contra a tentação
«narcisista da autorreferencialidade» - o oposto da «alteridade» cristã que «é
dom e serviço».
Referindo-se ao trecho da segunda carta de São Paulo aos
Coríntios (1,1-7), proposto pela liturgia como primeira leitura, o Pontífice
observou que em apenas «19 linhas, Paulo fala 8 vezes de consolação, de se
deixar consolar para consolar o próximo». Portanto, a consolação «é citada 8
vezes em 19 linhas: é demasiado forte, quer dizer-nos algo». E «por isso acho
que esta é uma oportunidade, uma ocasião para refletir sobre a consolação: o
que é a consolação da qual Paulo nos fala»? Mas «antes de tudo vejamos que a consolação
não é autónoma, nem está fechada em si mesma».
Com efeito, «a experiência da consolação, que é uma
experiência espiritual, tem necessidade da alteridade para ser plena: ninguém
se pode consolar a si mesmo». E «quem procura fazê-lo, acaba por se fitar no
espelho: olha-se no espelho, procura maquilhar-se, aparecer; consola-se com
coisas fechadas que não o deixam crescer e respira o ar narcisista da
autorreferencialidade». Mas «esta é a consolação maquilhada, que não deixa
crescer, não é consolação porque está fechada, falta-lhe a alteridade».
«No Evangelho encontramos muitas pessoas assim», explicou.
«Por exemplo, os doutores da lei, que são cheios de suficiência, fechados, e
esta é a “sua consolação”». O Papa referiu-se explicitamente ao «rico Epulão,
que vivia de festa em festa e assim pensava ser consolado». Mas talvez sejam as
palavras da prece do fariseu, do publicano diante do altar, que melhor exprimem
esta atitude: «Dou-te graças, ó Deus, porque não sou como os outros». Em
síntese, aquele homem «fitava-se no espelho, olhava para a sua alma maquilhada
por ideologias e dava graças ao Senhor». É Jesus quem «nos mostra estas pessoas
que, com este estilo de vida, nunca alcançarão a plenitude», mas «no máximo a
arrogância, ou seja, a vanglória».
«Para ser autêntica, cristã, a consolação precisa da
alteridade» porque «a verdadeira consolação é recebida». Por esta razão, «Paulo
começa com a bênção: “Bendito sejas, ó Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo,
Pai misericordioso e Deus de toda a consolação!”». E «é o Senhor Deus quem nos
consola, é Deus quem nos concede este dom: se tivermos o coração aberto, Ele
vem e dá-nos a consolação». Esta é «a alteridade que faz crescer a verdadeira
consolação; e a verdadeira consolação da alma amadurece também noutra
alteridade, para que possamos consolar os outros». Eis, pois, que «a consolação
é uma condição de passagem do dom recebido para o serviço oferecido», a ponto
que «a verdadeira consolação possui esta dupla alteridade: dom e serviço».
«Assim, quando deixo entrar a consolação do Senhor como dom
é porque preciso ser consolado: tenho necessidade». Com efeito, «para ser
consolado é preciso reconhecer que temos necessidade: só assim o Senhor vem,
nos consola e nos confere a missão de consolar os outros». Sem dúvida, «não é
fácil ter o coração aberto para receber o dom e praticar o serviço, as duas
alteridades que tornam possível a consolação».
«É Jesus quem explica como posso abrir o meu coração»,
afirmou o Papa: «Um coração aberto é feliz e no Evangelho ouvimos quem é feliz,
quem é bem-aventurado: o pobre». Assim, «o coração abre-se com uma atitude de
pobreza de espírito: quantos sabem chorar, os mansos, a mansidão do coração; os
famintos de justiça, os que lutam pela justiça; os misericordiosos, os que têm
misericórdia pelo próximo; os puros de coração; os pacificadores e quantos são
perseguidos por causa da justiça, por amor à justiça». E «assim o coração
abre-se e o Senhor vem com o dom da consolação e com a missão de consolar os
outros».
Mas há também aqueles que «têm o coração fechado: não são
felizes porque não podem receber o dom da consolação e dá-lo aos outros». Não
seguem as bem-aventuranças e «sentem-se ricos de espírito, suficientes». São
«os que não têm necessidade de chorar, porque se sentem justos; os violentos
que não sabem o que é a mansidão; os injustos que vivem e praticam a injustiça;
os “in-misericordi” - sem-misericórdia - que nunca perdoam, nunca precisam
perdoar, pois não sentem a necessidade de ser perdoados; os sujos de coração; os
promotores de guerra, não de paz; e os que nunca são criticados nem perseguidos
por lutarem pela justiça, porque não se importam com as injustiças padecidas
pelos outros: são pessoas fechadas».
Precisamente diante destas bem-aventuranças invertidas, o Pontífice
sugeriu: «Hoje far-nos-á bem pensar» em «como é o meu coração: aberto? Sei
receber o dom da consolação, peço-o ao Senhor e depois sei dá-lo ao próximo
como dom do Senhor e meu serviço?». E «assim, com estes pensamentos durante o
dia, voltemos a dar graças ao Senhor que é tão bom e procura consolar-nos
sempre». Recordando que Deus «só nos pede que a porta do coração esteja aberta
ou pelo menos entreaberta, de forma que Ele arranje a maneira de entrar».
Papa
Francisco
Fonte: Santa
Sé - Libreria Editrice Vaticana
Publicado no
L'Osservatore Romano, ed. em português, n. 25 de 22 de junho de 2017
w2.vatican.va/content/francesco/pt/cotidie/2017/documents/papa-francesco-cotidie_20170612_deus-arranja-maneira-entrar.html
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Ricardo Feitosa e Marta Lúcia
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